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O mito do narcoterrorismo

  • Foto do escritor: Bernardo Ariston
    Bernardo Ariston
  • há 2 horas
  • 3 min de leitura

Transformar o tráfico em terrorismo é um erro conceitual e jurídico que confunde o debate sobre segurança pública e ameaça o Estado de Direito.


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Por Bernardo Ariston


A palavra é nova, mas o truque é antigo: transformar o medo em política pública e a insegurança em ferramenta de mobilização. “Narcoterrorismo” virou o termo do momento entre autoridades que tentam, a qualquer custo, dar ao tráfico de drogas a conotação de terrorismo, como se uma nova etiqueta fosse capaz de resolver a falência estrutural da segurança pública brasileira.


O gatilho dessa narrativa foi a Operação Contenção, no Rio de Janeiro, a mais letal da história recente, com 121 mortos, incluindo quatro policiais. Desde então, discursos oficiais passaram a tratar facções criminosas como “organizações narcoterroristas”. O tom é forte, mas o fundamento jurídico é inexistente. No Brasil, o “narcoterrorismo” não existe na lei. O que existe é a tentativa de substituir o debate técnico e jurídico por uma retórica de guerra.


A confusão é útil, mas enganosa. O ordenamento jurídico brasileiro já trata, de forma clara e independente, dos crimes de tráfico e de terrorismo. A Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) define e pune o tráfico de entorpecentes e suas organizações. Já a Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo) descreve os atos terroristas, vinculando-os a motivações políticas, ideológicas, religiosas ou discriminatórias. São tipos penais distintos, ambos severamente punidos e que, em tese, podem até coexistir no mesmo caso concreto, caso um traficante pratique atos tipificados como terroristas. Ou seja, não há vácuo legal, nem necessidade de criar o fantasma do “narcoterrorismo”. O que falta ao Estado brasileiro não é lei, é gestão, inteligência e presença real nas comunidades.


O termo “narcoterrorismo” nasceu no Peru, nos anos 1980, quando o presidente Fernando Belaúnde usou a expressão para descrever ataques de grupos ligados ao tráfico. Rapidamente, os Estados Unidos incorporaram o conceito à sua “guerra às drogas”, misturando cartéis, guerrilhas e movimentos sociais sob o mesmo rótulo. Essa estratégia retórica permitiu intervenções militares, espionagem e sanções sob o pretexto do combate ao terror. Agora, o mesmo discurso ressurge no Brasil, travestido de novidade, mas carregando a velha lógica da militarização da pobreza.


O projeto de lei em tramitação no Congresso, PL 1.283/2025, tenta incluir facções criminosas e milícias na Lei Antiterrorismo. É uma proposta perigosa, desnecessária e perigosa porque amplia o poder punitivo do Estado sem critério técnico, abrindo espaço para abusos. Desnecessária porque o aparato jurídico já contempla essas condutas. O que se busca, na prática, é criar um ambiente emocional de medo e legitimar o uso desproporcional da força, principalmente nas favelas e periferias. Ao rotular traficantes de “terroristas”, naturaliza-se a morte de inocentes e reforça-se a lógica da necropolítica, onde a vida do pobre vale menos que a manchete do dia.


A manipulação é evidente, pois quando se fala em “narcoterrorismo”, o foco deixa de ser o combate real às redes financeiras do crime, ao contrabando de armas e à corrupção institucional que o alimenta. O inimigo passa a ser o território, não a estrutura. A favela vira o campo de guerra e o cidadão comum, o inimigo interno. É uma inversão perversa, o Estado ausente para garantir direitos torna-se presente apenas para matar.


Há ainda um componente geopolítico ignorado pela maioria: ao adotar o discurso do narcoterrorismo, o Brasil se aproxima de uma narrativa que serviu, em outros países, como justificativa para ingerências externas e cooperação assimétrica. Essa classificação já foi usada para legitimar operações estrangeiras sob o argumento de “segurança internacional”. Foi exatamente assim que Colômbia e Peru se tornaram laboratórios de uma guerra sem fim, onde o terror passou a ser mais o do Estado do que o dos criminosos.


No fundo, a insistência em falar em “narcoterrorismo” não é sobre segurança, mas sobre poder. É o uso político do medo para justificar políticas de exceção. O discurso é conveniente, quem o adota se apresenta como herói contra o mal absoluto, enquanto desvia a atenção da ausência de políticas sociais, do desmonte das polícias investigativas, da falta de integração de dados e do abandono das fronteiras.


O Brasil precisa de inteligência, não de slogans, precisa de política pública de segurança efetiva e eficaz, não de bravatas. O crime organizado se combate com investigação financeira, tecnologia, controle de fronteiras e fortalecimento institucional  e não com novos nomes para velhos problemas. O resto é teatro, um perigoso teatro em que o medo substitui a lei e a democracia vira vítima do próprio pânico que alimenta.


Chamar traficante de terrorista não torna o país mais seguro, apenas mais autoritário. O que o Brasil precisa combater não é o narcoterrorismo, mas o narcoestado que se alimenta da desigualdade e da política do medo.


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